25 Janeiro 2011
O coronel Hugo Chávez Frías estava na prisão em 1992, após a fracassada tentativa de golpe de Estado que liderou na Venezuela, quando tomou gosto pela obra do sociólogo alemão Heinz Dieterich. Eram textos sobre Simón Bolívar, Manuela Sáenz, a libertação da América Latina e os conflitos na região - temas caros a Dieterich, radicado no México há mais de três décadas, como professor da Universidade Autônoma Metropolitana.
A reportagem e a entrevista é de Daniel Rittner e publicada pelo jornal Valor, 26-01-2011, sob o título "Guru de Chávez critica modelo venezuelano".
O alemão, que começou sua vida política agitando os estudantes e correndo da polícia nas ruas de Frankfurt, foi companheiro do ex-ministro Joschka Fischer e de Daniel Cohn-Bendit nas passeatas de 1968. Intelectual de esquerda, manteve sua veia revolucionária e cunhou o termo "socialismo do século XXI", em um livro homônimo de 1996. Três anos mais tarde, já sentado no gabinete presidencial do Palácio de Miraflores, Chávez chamou o alemão para uma conversa e contou a ele ser um leitor habitual de sua obra.
Os dois se aproximaram e, segundo biógrafos do presidente venezuelano, Dieterich se transformou em uma espécie de guru de Chávez - responsável pelo aperfeiçoamento de sua formação política e por incutir ideias sobre como colocar em prática a "revolução bolivariana". Por motivos jamais esclarecidos, Chávez e Dieterich se afastaram nos últimos anos. Não se sabe quando foi o último contato entre eles.
Questionado sobre isso, o alemão diz que prefere manter o assunto "de maneira confidencial". É o único assunto que evita, em entrevista ao Valor, por email. Para o sociólogo, Chávez vive o momento mais difícil desde 2002 - quando o feitiço se inverteu e ele conseguiu resistir a um golpe frustrado - e corre risco real de perder as eleições presidenciais de 2012. "O que está em jogo é a sobrevivência de seu projeto político", disse.
Contrariando a avaliação corrente, Dieterich acredita que Chávez está migrando para o centro, a fim de conquistar o eleitorado necessário para continuar no poder. "Vai fazer o contrário do que diz publicamente", acredita o professor.
Eis a entrevista.
A Venezuela vem de dois anos seguidos de recessão na economia, a oposição teve excelente votação nas eleições legislativas de setembro e o governo voltou a desvalorizar a moeda na virada do ano. Este é o momento mais difícil nos 12 anos de "revolução bolivariana"?
Não, os momentos mais difíceis foram o golpe militar de 11 de abril de 2002 e o golpe petroleiro que o seguiu. No entanto, depois daquela crise, a conjuntura atual é a mais difícil que já enfrentou o presidente. O que está em jogo é a sobrevivência de seu projeto político.
Em um relatório recente, a Cepal mostrou que a Venezuela foi o país latino-americano onde a pobreza mais caiu entre 2002 e 2008. Mas a inflação continua rondando 30% e há falta de investimentos privados. Na sua opinião, o modelo venezuelano requer correções ou é o próprio modelo que está errado?
É necessário promover mudanças estruturais no modelo atual, que foi funcional durante o período pós-golpista de 2003 a 2007, mas que hoje em dia é insustentável, diante dos desequilíbrios que provoca.
Entre eles, menciono a alta taxa de inflação, o alto gasto corrente, o déficit fiscal, a baixa taxa de investimento, a falha em substituir importações, a extrema dependência do petróleo, a distorção da estrutura de preços entre bens e serviços importados e nacionais, a irreal paridade dólar/bolívar.
Esses desequilíbrios se devem em parte à política antigovernamental de setores do capital privado, mas em maior grau à ineficiência do governo na gestão macroeconômica e sua incompreensão sobre a necessária flexibilização do modelo, conforme a mudança das circunstâncias.
Quais foram os principais acertos do presidente Chávez nos últimos anos?
Entender rapidamente que a hegemonia unilateral de Washington havia chegado ao seu fim e construir uma política global correspondente. Ter superado a inércia e o medo das classes políticas e elites econômicas locais, particularmente no Brasil e na Argentina, para apoiar ou tolerar um projeto comum hemisférico. Do lado interno, ter consolidado seu apoio nas Forças Armadas e ter implementado uma política keynesiana, contra a hegemonia neoliberal do momento, que lhe assegurava o apoio das massas. Isto é, a tentativa de criar um Estado de bem-estar e de direito em condições do Terceiro Mundo.
E os principais erros?
O principal erro consistiu em não aceitar que a fase pós-golpista da política venezuelana terminou perto do fim de 2007 e que ele deve mudar o modelo de governança do período 2003-2007.
Depois dos acontecimentos de 2002, a oposição não pôde desconstruir a imagem de golpista, durante muitos anos. O senhor considera que alguma coisa mudou na oposição venezuelana ou que tenha surgido alguma nova figura dissociada dos eventos de 2002?
Não se vê nenhuma evolução na oposição. O discurso, o ódio, o comportamento são os mesmos que em 2002, ainda que alguns tratem de ocultá-los. Mas, de fato, continuam sendo amantes do Consenso de Washington e do Império. Não há evolução do projeto político, nem ideias frescas, nem figuras transcendentes emergentes neste momento.
Por que tantos aliados e amigos de Chávez - poderíamos mencionar desde o governador de Lara, Henry Falcón, e o ex-ministro da Defesa Raúl Baduel até o senhor mesmo - se afastaram tanto dele ao longo desses 12 anos?
São casos diferentes. O general Raúl Baduel [hoje preso] pedia, a partir do centro, um projeto de governo transparente, explicado racionalmente, por exemplo no que diz respeito ao socialismo do século XXI. A aliança com ele era possível, mas a direita da classe política bolivariana queria excluí-lo porque ele não era servil com o poder. Além disso, ele era, depois de Chávez, o homem mais popular do bolivarianismo porque salvou a revolução durante o golpe de Estado.
Henry Falcón [hoje dirigente do partido oposicionista Pátria para Todos, formado majoritariamente por ex-chavistas] pedia o mesmo, a partir da centro-esquerda, e, além disso, uma condução coletiva do processo. Novamente, Chávez negou os dois pleitos. Insistia na "lealdade incondicional" dos chavistas diante do "líder". Perderam-se, então, alianças importantes e possíveis como o centro e a centro-esquerda do espectro político venezuelano. Eu me afastei a partir da esquerda, porque não vejo nenhuma tentativa séria do presidente de transcender o capitalismo, além do perigo de que uma condução unipessoal possa destruir o processo.
O senhor considera que há um risco real de derrota de Chávez nas eleições presidenciais de 2012?
Falta muito tempo, mas agora eu diria que sim, que há razões estruturais que poderiam levar ao empate ou à perda do poder eleitoral do presidente. Chávez se deu conta desse perigo e se deslocará em direção ao centro, como mostram suas últimas medidas. Isto é, vai fazer o contrário do que diz publicamente: não vai "radicalizar" o processo de forma revolucionária, mas aproximar-se mais da burguesia. Será semelhante às mudanças entre o primeiro e o segundo governo de Perón.
A que medidas o senhor se refere?
O veto à lei de reforma universitária, a oferta à oposição de retirar a Lei Habilitante em cinco meses, mesmo tendo-a autorizada por 18 meses, o cancelamento do aumento do IVA, a nova desvalorização do bolívar, o desalojamento de fazendas militarizadas no sul do Estado de Zulia, o congelamento contínuo de Eduardo Samán [ex-ministro do Comércio e militante radical do PSUV] a ausência total de iniciativas reais para iniciar o socialismo do século XXI e a moderação retórica perante o governo americano.
Se tivesse a oportunidade de dar a Chávez um único conselho, com a certeza de que ele o seguiria, o que diria?
Conduza a economia de mercado como se deve conduzi-la - respeitando que é um sistema complexo de retroalimentação - e comece a construir as instituições da democracia real, as instituições do socialismo democrático do século XXI.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"Não vejo nenhuma tentativa séria de Chávez de transcender o capitalismo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU